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A segunda vaga está aí mas é diferente da primeira
Jornal de Negocios


O número de novos casos de covid-19 reportados ontem ascendeu a 770, o que representa o valor mais alto desde 10 de abril. Este dado veio confirmar que Portugal, tal como outros países europeus, está a entrar numa segunda vaga. Mas será uma vaga idêntica? Os números da Direção-Geral da Saúde (DGS) e do site The Our World In Data (OWID) evidenciam, para já, grandes diferenças. Não só na real dimensão da segunda vaga, como no perfil de infetados e na severidade da doença.

Comecemos pela dimensão da vaga. Se o número de novos casos é o mais alto desde 10 de abril, o dado impressiona menos quando colocado em perspetivas face ao número médio de testes, que duplicou desde abril. A percentagem média de testes com resultado positivo nos últimos sete dias ronda os 3,2%, bem longe dos 7,5% registados nessa altura e próximo dos valores do fim de abril quando o ritmo de contágio estava já em franca desaceleração (ver gráfico).

Conforme salienta o site OWID, é fundamental levar em linha de conta o universo de testes quando se está a analisar o número de casos identificados. Em princípio, quanto mais se testa mais casos são encontrados.

No entanto, a taxa de testes positivos não é um indicador à prova de bala. Para termos a certeza, “teríamos de saber se a população testada tem as mesmas características”, lembra Filipe Froes. E na sua opinião, não tem. “Antes a testagem era menor e era feita sobretudo a doentes com sintomas ou hospitalizados, tipicamente mais velhos”, afirma o coordenador do gabinete de crise covid-19 da Ordem dos Médicos. Agora, sustenta, há uma série de testes que são feitos por obrigação de protocolo. Só nos hospitais, por exemplo, são milhares deles, seja na entrada de doentes oncológicos seja para fazer exames e cirurgias. Ou seja, são testados doentes cuja probabilidade de terem este coronavírus é mínima e isso baixa a percentagem de testes positivos.

Menos doentes internados

Se a curva dos novos casos deixa poucas dúvidas de que estamos numa segunda vaga, quando se olha para o número de pessoas internadas o caso muda de figura. Usando uma vez mais médias móveis de sete dias, para alisar a volatilidade diária dos dados da DGS, nota-se uma subida do número de internados nas enfermarias desde finais de agosto, que se acentuou há uma semana.

Mas não só o ritmo de crescimento não se compara com o verificado no início da primeira vaga, como o valor está ainda muito abaixo do de março ou da primeira semana de abril. O número médio de internados nos últimos sete dias ronda os 450, ficando bem abaixo dos 627 registados no final de março ou dos 1.179, a 10 de abril (ver gráfico). Note-se, porém, que a política de internamento mudou em meados de abril, passando os doentes com sintomas ligeiros a serem seguidos em casa.

Mas é nos doentes em cuidados intensivos que o contraste é maior. O número médio tem vindo a aumentar ligeiramente desde o início de setembro, tendo passado de 39 no final de agosto para 58 a 16 de setembro. Mas no final de março eram 113 e a 10 de abril 253.

Paula Coutinho, médica intensivista do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, confirma que tem havido um pequeno aumento do número de doentes internados nos cuidados intensivos, mas o seu perfil não mudou face à primeira vaga. “O perfil é muito parecido, são pessoas entre os 50 e os 80 anos, quase sempre com outras doenças associadas. Nas enfermarias, o perfil também não mudou.”

Quanto ao número de mortos, ontem houve um aumento acentuado – faleceram 10 pessoas – mas a média tem rondado os quatro por dia. Ora, este valor é idêntico ao registado na segunda quinzena de julho, ficando muito abaixo da média de 18 do final de março e dos 27 de 10 de abril.

Contágios nos mais jovens

A redução do número de mortes parece estar relacionada com o perfil dos infetados que é mais jovem. “Agora os infetados são em média mais jovens, sobretudo população em idade ativa”, diz ao Negócios esta médica. “Há uma diferença muito importante nesta segunda vaga que se prende com o perfil demográfico e por isso temos muito menos mortalidade e severidade da doença”, reforça Ricardo Mexia, presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública.

Os números da DGS são muito claros sobre isso. A média diária de novos infetados até aos 39 anos era na primeira quinzena de setembro 26% superior face a abril, enquanto nos escalões entre os 40 e os 60 e acima dos 70 anos havia quebras respetivas de 25% e 58%. Mas a mudança não está só no padrão demográfico dos contagiados. Também a taxa de letalidade (percentagem de mortos no total de casos de covid-19) tem vindo a baixar. Após atingir um pico em maio, a letalidade baixou muito em junho entre os 60 e 70; 70 e 80; e acima dos 80 anos; mantendo depois um ritmo de redução ligeira. Mas no escalão acima dos 80, a quebra foi muito relevante: de 19,2% no mês de julho, passou para 6,1% na primeira quinzena de agosto (ver gráfico).

A menor letalidade nos mais velhos estará relacionada com “a melhor gestão clínica”, avança Ricardo Mexia. Filipe Froes reforça: “A experiência clínica demonstra que conseguimos reduzir a mortalidade e o tempo de internamento dos doentes”, diz. “No início usávamos fármacos que agora já não usamos e os que usamos agora demonstram maior eficácia”, diz.

Mas não haja ilusões. “Não vai aparecer nenhum tratamento milagroso”, refere Paula Coutinho. “Demorámos mais de 20 anos para encontrarmos fármacos eficazes para combater o HIV. Os antivíricos são medicamentos muito mais difíceis de produzir do que os antibacterianos” e “sou francamente cética sobre a capacidade de ter um eficaz no combate a este coronavírus”, acrescenta esta médica de cuidados intensivos.

Apesar da segunda vaga parecer menos agressiva, há uma grande diferença de contexto. Na primeira, o país confinou-se o que travou os contágios. Agora, no início da segunda vaga, está a retomar a atividade e a abrir as escolas. E em bom rigor, ninguém sabe o que vai acontecer.

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