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Os sinais faz de conta do Código da Estrada
Expresso


Os sinais parecem iguais, com fundo azul e os mesmos figurantes. Mas num segundo olhar a ilusão não resiste a um “Veja as diferenças”. O de baixo, colocado em ruas de Lisboa, tem só uma casa. O de cima, no Porto, tem três. O traço contínuo de um é mais comprido e toca a extremidade da placa. Nos carros, um é ligeiramente mais achatado e tem uma linha horizontal entre os faróis. Mesmo os peões são diferentes: mais esguios e de linhas arredondadas uns; mais encorpados os outros. Igual só a bola, que é redonda, numa história com muita coisa quadrada.

Lisboa e Porto são duas das cidades (assim como Vila Real) que já colocaram sinais de zonas de coexistência (ZC), uma novidade trazida pela revisão do Código da Estrada, datada de 3 de setembro de 2013. Uma ZC é uma “zona da via pública especialmente concebida para utilização partilhada por peões, onde vigoram regras especiais de trânsito e sinalizada como tal”.

As zonas de coexistência são feitas para proteger os “utilizadores vulneráveis” (um conceito também criado pelo Código da Estrada de 2013), ou seja, “peões e velocípedes, em particular, crianças, idosos, grávidas, pessoas com mobilidade reduzida ou com deficiência”. Trata-se de uma nova filosofia de ordenamento das cidades, pois com as ZC “é permitida a realização de jogos na via pública” e a velocidade máxima é fixada em 20 quilómetros/hora. Os “vulneráveis” são reis e senhores do espaço: “Os condutores não devem comprometer a segurança ou a comodidade dos demais utentes da via pública, devendo parar se necessário”, lê-se no Código da Estrada.

Assim, há um novo paradigma, consagrado na lei, e há mesmo pontos do espaço público identificados como ZC, mas é como se nada existisse. Os sinais não têm reconhecimento oficial, o que só acontecerá quando o Regulamento de Sinalização de Trânsito (RST), que decorre do Código da Estrada, for publicado em “Diário da República”. Isso devia ter acontecido até 90 dias após o novo Código da Estrada, mas o RST ainda jaz em projeto. Já tem, portanto, mais de quatro anos de atraso.

Outro sinal sem cobertura legal, desde há bastante tempo (finais de 2014) em estradas do Sul do país, é o que adverte para o possível atravessamento do lince ibérico.

Uma consequência deste estado de coisas é a impossibilidade de a polícia autuar quem desrespeite aquela sinalização vertical. “O uso de um sinal legalmente inexistente impede a aplicação do direito contraordenacional”, reconhece o Ministério da Administração Interna (MAI), remetendo, no entanto, para a existência de “sinalização complementar” à de ZC, por exemplo.

O vazio regulamentar não se sente na generalidade das situações (as que na verdade condicionam o dia a dia das pessoas), porque mantém-se em vigor o RST de 1998. Mas este naturalmente não pode cobrir as realidades criadas pelo Código da Estrada de 2013.

Em Lisboa há sinais de ZC no Arco do Cego, Largo de Santa Isabel (Campo de Ourique), Bairro do Charquinho (Benfica) e Passeio dos Fenícios (Parque das Nações). A câmara do Porto escolheu a rua do Alferes Malheiro (Baixa). Vila Real instalou uma ZC na entrada do Bairro da Concha, recentemente requalificado.

Condutores só são sancionados se ao mesmo tempo desrespeitarem outros sinais

Nos três casos há a noção de que são iniciativas sem o devido suporte legal. Porto e Lisboa esclarecem que fazem acompanhar o sinal de zona de coexistência de outros com toda a validade (a Norte, um de trânsito proibido, e que aliás é visível na imagem; a Sul, um de limitação da velocidade a 20 quilómetros/hora), ficando por isso os condutores sujeitos ao cumprimento desta outra sinalização. Contudo, em dois pontos de Lisboa visitados pelo Expresso (Arco do Cego e Bairro do Charquinho) há placas de zona de coexistência sem estarem acompanhadas de qualquer sinal.

Diferente entendimento sobre as ZC têm outras autarquias contactadas, como é o caso de Cascais, Braga, Faro e Coimbra. Concordam com o novo conceito, mas só o colocarão em prática quando existirem todas as ferramentais legais. Cascais, que “vê muitas vantagens” nas ZC, tem já “identificados” locais, nomeadamente no casco velho do centro histórico e em ruas junto à Capitania. Braga também já escolheu as zonas, mas “a falta de legislação é uma debilidade”.

Governo mantém a calma

Embora deixando sem resposta uma pergunta sobre as razões do atraso de quatro anos no RST (sendo que os primeiros 22 meses foram no tempo do Executivo PSD/CDS), fonte oficial do MAI diz que “a apresentação do novo RST está prevista para o primeiro trimestre” deste ano.

FRASES DOUTROS

“É a balcanização da sinalização, pois cada câmara inventa a sua”

Fernando Nunes da Silva

Professor do Instituto Superior Técnico

“A uniformidade de sinais verticais foi uma revolução que contribuiu para a segurança rodoviária. Atingiu-se um rigor que se está a perder”

Carlos de Almeida Roque

Especialista em sinalização rodoviária

“O uso de um sinal legalmente inexistente impede aplicar coimas”

Fonte do MAI

Se o Governo desvaloriza razões e consequências da falta do RST (e o MAI recusou também comentar a existência de sinais diferentes de cidade para cidade), bem mais crítica é a situação de especialistas ouvidos pelo Expresso.

E são eles a dar as chaves para explicar o enigma mote do arranque deste texto: como pode haver no mesmo país sinais de trânsito diferentes para uma mesma situação?

A resposta é simples: na falta do RST (mas com acesso a um projeto que circula desde 2013 por vários organismos oficiais, com os desenhos de novos sinais, e conhecedoras da sinalética além-fronteiras) algumas autarquias meteram mãos à obra e resolveram o “vazio legal”. E cada uma desenhou a peça à sua maneira. Além da consequência jurídicas — uma vez que “não se pode atribuir responsabilidade a quem viole essa sinalização e dela resulte prejuízo para terceiros, a não ser que sejam violadas outras normas”, diz Fernando Nunes da Silva —, instaura-se uma “‘balcanização’ deste tipo de sinalização, pois cada câmara inventa a sua”, acrescenta o especialista em mobilidade e transportes.

Governo promete acabar com o vazio legal na sinalização até ao fim do primeiro trimestre deste ano

Ana Bastos, professora da Universidade de Coimbra e especialista em transportes e vias de comunicação, sublinha que “o RST é fundamental à gestão quotidiana de todas as instituições/organismos que gerem e trabalham na via pública, sendo ainda fundamental a homogeneização da sinalização (grafismo e dimensões) a nível nacional”. Para Ana Bastos, “a qualidade da sinalização do trânsito está dependente da revisão do RST e dos trabalhos posteriores de revisão” de outras normas e disposições.

A questão da “qualidade” também toca fundo a Carlos de Almeida Roque, engenheiro civil e especialista em sinalização rodoviária (com colaboração assídua tanto com entidades nacionais como internacionais). Roque participou inclusive na proposta de RST que se vem arrastando na via sacra das entidades oficias. “O que me dói no meio disto tudo é que houve uma altura em que se conseguiu uniformidade na sinalização, nomeadamente na vertical”, e isso foi conseguido com o RST de 1998. “Ao andarmos por diferentes estradas de Norte a Sul, verificamos que em todo o país os sinais de código têm todos os mesmos desenho e dimensões adequadas ao tipo de estrada”, diz, para acrescentar: “A uniformidade de sinais verticais foi uma revolução que contribuiu para a segurança rodoviária”. E conclui: “Atingiu-se um nível de rigor que está a ser abandonado e há uma perda de qualidade da sinalização”.

No novelo das ZC, Nunes da Silva ainda pega noutro fio da meada. “Ao colocarem sinalização sem alteração do ambiente rodoviário tradicional, as câmaras induzem em erro os utilizadores”, diz. “Os peões julgam que podem andar à vontade na faixa de rodagem dos automobilistas ou motociclistas; os condutores consideram que, como é habitual, essa parte do espaço público lhes está reservada. E se houver um acidente...”

SINALÉTICA AINDA VIRTUAL (MAS PARA LEVAR A SÉRIO)

São dez as situações de nova sinalização emergente do Código da Estrada ainda a carecer de forma legal, segundo o Ministério da Administração Interna. Alguns dos casos estão já sinalizados na via pública (como se vê nestas páginas), mas é impossível saber quais são, onde e quem os colocou (câmaras ou entidades gestoras de vias). Eis a lista de novos sinais e símbolos que aguardam publicação em “Diário da República”. Uma informação tornada pública não para instigar o desrespeito pelos sinais, mas para lembrar que são precisos cuidados redobrados e também para interpelar as autoridades públicas sobre as suas responsabilidades.

Zona de Coexistência

Fim de zona residencial ou de coexistência

Linces ibéricos

Passagem para velocípedes Indicação da aproximação de uma passagem para velocípedes

Anfíbios Indicação de que a via pode ser atravessada por anfíbios

Via obrigatória para motociclos Indicação da obrigação para os motociclos de circularem pela via de trânsito a que se refere o sinal

Fim da via obrigatória para motociclos

Via reservada a veículos com alta taxa de ocupação Indicação de que a via está reservada à circulação de veículos que transportem duas ou mais pessoas incluindo o condutor

Fim da via reservada a veículos com alta taxa de ocupação

Lomba redutora de velocidade Indicação da localização de uma lomba redutora de velocidade

45% dos condutores consideram “mau” o estado das estradas

Quanto à qualidade da sinalização, são mais os que a consideram má do que boa, embora por muita curta margem

Um estudo aos condutores portugueses, sob a égide do ACP, apresentado nesta semana, mostra um país fortemente motorizado, mas com um parque automóvel “vetusto”, diz Fernando Nunes da Silva, o coordenador científico do trabalho. O inquérito, a 6560 condutores, revela que 43% nunca foram mandados parar pelas autoridades, 19% já adormeceram ao volante e 28% tiveram familiares ou amigos gravemente feridos ou mortos em acidentes. O estado das vias é mau para 45% (outro tanto acham-no razoável) e só 10% o consideram bom. A sinalização é razoável para 55%, sendo má para 24% e boa para 21%. P.P.