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Será que os gestores sonham com trabalhadores elétricos?
Expresso


O romance de ficção científica escrito em 1968 por Philip K. Dick, “Os Androides Sonham com Carneiros Elétricos?” (“Do Androids Dream of Electric Sheep?”, no original) e, entretanto adaptado ao cinema por Ridley Scott, como “Blade Runner”, inspira este título. E ainda que o contexto atual já não seja, de todo, ficção científica, as questões associadas a uma ‘coabitação’ homem-máquina mantêm-se hoje como no passado. Humanizar a máquina significa, forçosamente, ‘desumanizar’ a humanidade? E que impactos terá a nível social e económico, uma eventual substituição dos trabalhadores por robôs nas empresas? O debate que tem estado na ordem do dia desde que a robô Sophia, reconhecida como cidadã na Arábia Saudita, foi apresentada ao mundo no último Web Summit, intensificou-se agora com um estudo da Dell Technologies, que avança que 82% dos executivos acreditam que homens e máquinas vão integrar as mesmas equipas de trabalho nos próximos cinco anos. A maioria já está a preparar as suas empresas para isso, mas os especialistas anteveem o aparecimento de novas desigualdades no mercado laboral, desde as oportunidades de emprego aos salários.

Ao mesmo tempo que um estudo da CB Insights garante que a automação e a robótica, decorrentes dos avanços da inteligência artificial, empurrarão para o desemprego mais de 10 milhões de profissionais nos próximos cinco a dez anos, a tecnológica Dell vem agora afirmar que o futuro do emprego passa afinal por uma cooperação homem-máquina e não, necessariamente, por uma substituição. E esta pode chegar bem mais cedo do que se espera. A empresa garante que em cinco anos o conceito de “humanos virtuais”, capazes de trabalhar lado a lado com os profissionais, não será pura ficção científica. A sustentar os seus argumentos estão as conclusões do estudo “Realizing 2030: The Next Era of Human-Machine Partnerships”.

O estudo, sustentado num inquérito realizado a 3800 líderes de empresas globais, defende que se vislumbra “um novo cenário com imensas possibilidades para o mercado laboral”, enfatizando que “82% dos líderes empresariais esperam que as suas forças de trabalho humanas e máquinas funcionem, em equipas totalmente integradas, nos próximos cinco anos”. Mas se esta visão é consensual à maioria dos CEO (presidentes executivos), o seu impacto no negócio e na vida dos profissionais não é assim tão linear. Sem contar que persistem alguma barreiras à digitalização e introdução de inteligência artificial nas empresas (ver texto em baixo).

Impactos da automação

Será a automação de que hoje falamos diferente, nos seus impactos para a economia e para os profissionais, das revoluções tecnológicas que assistimos no passado? As opiniões dividem-se. João Cerejeira, economista e professor da Universidade do Minho, acredita que os contextos são distintos e os desafios também. “A revolução industrial da década de 70 no século passado,promoveu a substituição de trabalhadores em funções não qualificadas por máquinas, e apresentou as tecnologias de informação como complementares às profissões mais qualificadas. Quem tinha mais qualificações sabia trabalhar melhor com as máquinas e ganhava mais. O contexto atual é diferente”, reconhece o economista. A tecnologia está hoje a substituir profissionais qualificados, como contabilistas, analistas de crédito, bancários e outros que, embora tendo na sua base funções complexas, exercem tarefas rotineiras.

Na verdade, a velha teoria de que os robôs substituiriam apenas os profissionais menos qualificados e com funções indiferenciadas, caiu por terra. “Tem vindo a aumentar o número de profissões menos qualificadas que são mais difíceis de substituir por máquinas, como os profissionais da restauração, as empregadas domésticas ou os cuidadores de idosos”, realça. João Cerejeira fala numa nova divisão de profissionais no mercado de trabalho atual: os não qualificados que exercem funções não rotineiras; os qualificados com funções complexas; os não qualificados que exercem funções rotineiras e os qualificados com funções complexas mas rotineiras. Os dois últimos grupos são os que mais sentirão o impacto da automação, tanto na empregabilidade como nos níveis salariais.

Novas desigualdades

A divisão sugerida por João Cerejeira abre, segundo o economista, caminho a novas desigualdades de oportunidade e salário. “As desigualdades passam a não estar centradas nos trabalhadores qualificados e não qualificados, mas sim nas competências que estes dominam”, explica. “Muitas das tarefas agora substituíveis por tecnologia exigiam qualificações, no mínimo, intermédias. Daí resultam desigualdades no topo das distribuições salariais, à medida que, por um lado, aqueles cujas competências são potenciadas pela tecnologia beneficiam de uma procura crescente e, por outro, aqueles com qualificações mais substituíveis enfrentam cada vez mais concorrência”, argumenta o economista.

Na análise do impacto da revolução tecnológica atual face às anteriores, e da chegada da inteligência artificial (IA) ao mundo do trabalho, nem todos os especialistas partilham da mesma visão. Os mais otimistas argumentam que os papel dos robôs não é diferente do desempenhado pelas tecnologias que os antecederam e que os receios de substituição do homem pela máquina são infundados. Outros reconhecem aos robôs maiores riscos, já que podem substituir tarefas cognitivas e não apenas mecânicas.

Numa investigação que conduziu sobre os impactos da automação, o economista Jason Furman, docente da Harvard Kennedy School e do Peterson Institute for International Economics, defende que “mesmo que a inteligência artificial seja similar às anteriores vagas de automação, isso não deve servir de conforto, já que os avanços tecnológicos recentes trouxeram inúmeros benefícios, mas também contribuíram para uma desigualdade crescente e uma quebra da força de trabalho”. Os humanos continuam a apresentar vantagens em relação às formas de inteligência artificial, sobretudo em tarefas que envolvem a inteligência emocional e social ou a criatividade, detenham ou não os profissionais qualificações superiores. Mas os últimos anos têm demonstrado um declínio acentuado dos salários para os profissionais.

Quebras salariais

“Entre 1975 e 2016, nos Estados Unidos, os profissionais com qualificação ao nível do ensino secundário viram os seus salários diminuir 70% e os profissionais com formação superior, 50%”, avança Jason Furman no estudo. Os dados confirmam a tendência avançada pela OCDE, que revela que 44% dos empregos que requerem qualificações ao nível do ensino preparatório apresentam competências com elevado potencial de automação, quando comparados com funções que requerem formação superior. Estando as qualificações e os salários interligados, Furman antecipa um maior fosso entre os empregos com menor grau de qualificação e salário (que registarão forte declínio) e os mais qualificados, que poderão registar um declínio mais moderado na procura e nível salarial. O economista vai ainda mais longe e explica que “o argumento tradicional de que não precisamos de nos preocupar com a possibilidade de os robôs nos roubarem o emprego, cede lugar à convicção de que talvez não precisemos de nos preocupar, porque estamos dispostos a trabalhar por salários inferiores”.

O aumento da produtividade é um dos grandes trunfos apontados à automação e à inteligência artificial. Furman não ignora os impactos da IA para a produtividade, mas cita um estudo realizado em 17 países, que concluiu que o uso da tecnologia contribuiu para aumentos da produtividade na ordem dos 0,4%. Ainda que o economista considere este ganho residual, avança que o aumento estrondoso do número de robôs industriais ocorrido nos últimos anos permite antever maiores ganhos para o futuro. Segundo a Federação Internacional de Robótica, desde 2010, a procura de robôs industriais aumentou 59%. Só em 2015, foram adquiridos 254 mil novos robôs para fábricas. China, Coreia do Sul, Japão e Estados Unidos lideram a lista de países com maior número de robôs a operar lado a lado com trabalhadores humanos.

João Cerejeira também reconhece este potencial, mas defende que a análise da produtividade não pode ter só em consideração o número de máquinas nas empresas. O docente relembra que a produtividade está sempre associada à gestão e à preparação dos profissionais para tirar o melhor partido da tecnologia. Também aqui, reforça, “a gestão das desigualdades é determinante. Há profissionais que podem registar aumentos de produtividade pela presença de tecnologia e outros que até podem registar quebras”. Para João Cerejeira, a concorrência homem-máquina é real. “O risco que atualmente enfrentamos é o de virmos a ter uma elite de 20% de profissionais em tarefas de elevada produtividade e os restantes em funções de baixa produtividade e baixos salários”, conclui.

Falta de preparação dos profissionais trava digitalização

Até 2023, homens e máquinas poderão trabalhar lado a lado nas empresas. Mas ainda há barreiras a ultrapassar

A integração de humanos e máquinas dentro da mesma equipa de trabalho até 2023, é uma visão consensual à maioria dos 3800 diretores executivos globais ouvidos pela Dell Technologies no estudo “Realizing 2030: The Next Era of Human-machine Partnerships”, realizado em parceria com o Institute for the Future (IFF), mas o impacto desta cooperação no negócio não é assim tão linear e subsistem nas empresas alguns entraves para que este cenário se confirme, à velocidade a que os executivos preveem. A falta de preparação da força de trabalho é uma das mais críticas para os gestores.

NÚMEROS

61%

dos líderes empresariais admitem dificuldades na preparação dos seus profissionais para lidar com a automação

85%

dos empregos e das profissões que teremos em 2030 ainda não foram criados, diz o Institute for the Future

Segundo o estudo, 50% dos líderes empresariais acreditam que os sistemas automatizados vão poupar tempo. A outra metade discorda. Segundo o relatório, as tecnologias emergentes vão “cimentar as parcerias entre humanos e máquinas, criar relações mais ricas e envolventes do que antes e ajudar a ultrapassar as nossas limitações”. Mas não há consenso sobre se isto se traduz numa oportunidade ou ameaça. Questões como uma maior exposição das empresas a ciberataques ou inexistência de protocolos claros para prever situações de falha em máquinas autónomas preocupam os líderes.

Jeremy Burton, líder de Marketing da Dell Technologies, justifica esta polarização de visões com o facto de existirem duas perspetivas extremas sobre o futuro: “A visão da obsolescência humana, baseada numa abordagem mais ansiosa, e a visão otimista de que a tecnologia irá ser a resposta para os nossos maiores problemas sociais”. O especialista reconhece que estas diferentes perspetivas podem dificultar a forma como as organizações se preparam para o futuro “e transformar-se em areia na engrenagem deste processo de mudança que se impõe”.

Desafios de gestão

E a falta de consenso não se resume à obsolescência humana vs. eficácia tecnológica e aos receios que envolvem esta cooperação homem-máquina. Há também divergências na velocidade a que a adaptação ao digital está a acontecer nas organizações. A generalidade dos líderes reconhece a necessidade de uma transformação profunda dos seus métodos para acomodar a nova realidade, mas muitas empresas ainda lidam com constrangimentos ao nível da falta de preparação da força de trabalho (61%) e tecnológicos (51%).

“Apenas 27% das empresas acreditam que estão na vanguarda, integrando a vertente digital em tudo o que fazem. 42% não sabem se vão conseguir competir na próxima década, e a maioria (57%) luta diariamente para acompanhar o ritmo das mudanças”, explica o estudo. A falta de preparação da força de trabalho (61%) e de visão digital e estratégica (61%) são apontadas como as principais barreiras para a integração e desenvolvimento digital das empresas, nos próximos anos. A seguir na lista estão os constrangimentos tecnológicos (51%), os financeiros e de tempo (37%) e os aspetos legais (20%).

Jeremy Burton reconhece que “estamos a entrar numa era de alterações monumentais” e 56% dos líderes acreditam que as escolas vão precisar de repensar a forma como aprendemos, para preparar os alunos para empregos que ainda não existem. Um pensamento que está em linha com as previsões do IFF quando diz que 85% dos empregos que vamos ter em 2030, ainda não foram criados.