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O novo interior começa aqui
Expresso


João Paulo Catarino, coordenador da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, entre os eucaliptos queimados de Pedrógão Grande: “Hoje ninguém investe aqui de forma racional para receber dentro de 40 anos”

A força da Natureza é impressionante. A vegetação já começou a regenerar em Pedrógão Grande. Por todo o lado, fetos e outras plantas emergem da terra queimada e negra, agora pintada com manchas verde vivo. Algumas plantas são desconhecidas da população, porque nasceram de sementes adormecidas no solo há dezenas ou mesmo centenas de anos, que abriram e germinaram com o calor do fogo. Nos eucaliptos que arderam, junto às raízes, despontam ramos que chegam a atingir um metro de altura. E numa encosta junto à estrada IC8, a Câmara de Pedrógão colocou um longo cartaz sugestivo que diz: “Obrigado, povo português. Vamos renascer”.

Depois das medidas de emergência do Governo para resolver os problemas imediatos provocados pela vaga de fogos florestais que atingiu o centro e o norte do país, chegou a hora de lançar as medidas estruturais, com impacto a médio e longo prazo, que podem verdadeiramente impedir a repetição da catástrofe: ordenamento do território despovoado, valorização dos seus recursos e atração de população e empresas.

Para renascer é preciso uma nova visão do território. O Governo mudou a sede da Unidade de Missão para a Valorização do Interior (UMVI) de Lisboa para Pedrógão Grande, coração do Pinhal Interior — uma decisão com uma grande carga simbólica. O coordenador da UMVI, instalada num edifício perto da Câmara Municipal, é João Paulo Catarino, um homem da região, ex-presidente da Câmara de Proença-a-Nova e engenheiro florestal. E os membros da sua equipa — um engenheiro agrónomo, uma economista, uma jurista, um engenheiro florestal, um engenheiro civil e um secretário — são também todos do Pinhal Interior, recrutados nos serviços públicos da região.

A tarefa mais urgente de João Paulo Catarino é pôr no terreno o Programa de Revitalização do Pinhal Interior (ver medidas ao lado), que envolve para já os sete concelhos da região mais atingidos pelos incêndios: Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Penela e Sertã. O programa, apresentado pela UMVI ao Governo em setembro e cuja discussão pública terminou no final de outubro, terá a versão final aprovada em Conselho de Ministros provavelmente ainda em novembro.

“O PROGRAMA DO PINHAL INTERIOR É A ÚLTIMA OPORTUNIDADE PARA O ESTADO MOSTRAR QUE TEM AUTORIDADE SOBRE O TERRITÓRIO”

O objetivo do programa é “desenvolver um projeto-piloto de reordenamento sustentado da floresta através de medidas de gestão integrada, valorizando as ações que promovam as funções ecológicas, sociais e culturais dos espaços florestais”, explica João Paulo Catarino, “em articulação com medidas estratégicas de prevenção do risco de incêndio”. E ao mesmo tempo lançar uma estratégia de desenvolvimento económico e social “que atraia investimento, diversifique atividades económicas e valorize os recursos endógenos” — em especial a floresta, a agricultura e a paisagem (o turismo) — “criando emprego sustentado e melhorando as condições de vida das populações”.

Nos 1600 km2 dos sete concelhos abrangidos não moram mais do que 44 mil pessoas. São apenas 27 habitantes por cada km2, quatro vezes menos do que a média nacional. É a população inteira de Portimão.

Floresta de crescimento lento

O Expresso visitou com o coordenador da UMVI um eucaliptal atingido pelo fogo. “Esta região é eminentemente de pinheiro-bravo, mas a falta de rentabilidade da sua exploração acabou por levar à compartimentação da floresta com eucalipto”, conta o ex-autarca. “Por causa disso o proprietário do pinhal comporta-se praticamente como um recoletor, mas se tiver eucalipto cultiva, trata, mantém, faz todas as operações”. Catarino reconhece que “hoje ninguém investe de forma racional para receber daqui a 40 anos e por isso a floresta de crescimento lento como o pinhal só tem duas saídas: ou o Estado compra os terrenos ou paga aos proprietários para plantarem pinheiros”.

Nos últimos 30 anos o pinheiro-bravo “não teve investigação associada, não se investiu, não houve praticamente melhoramento genético, mas é uma espécie de elevadíssimo valor económico”. Por isso, são necessárias “alternativas para compartimentar o pinheiro-bravo com espécies resistentes ao fogo ou a reintrodução da agricultura”.

Há dois eixos fundamentais no Programa de Revitalização do Pinhal Interior: “O ordenamento do território e o relançamento da economia”, salienta Luís Matias, presidente da Câmara de Penela, um dos sete municípios do Pinhal do Interior envolvidos. O autarca, que participou no seu debate público, conta que, apesar deste programa ainda não estar aprovado, há projetos “que não podem esperar” e que já estão a avançar na área da gestão e valorização florestal, “como o cadastro da propriedade rústica e o projeto de condomínio de aldeia em Ferraria de São João (concelho de Penela), onde se criam estruturas de prevenção contra risco de incêndio, de modo a aumentar a segurança de pessoas e bens”. Luís Matias defende que “deve ser criado um modelo de governação participativa do Pinhal Interior como unidade territorial única, bem como um observatório para o acompanhamento e monitorização do programa, que é crítica”.

“OS APOIOS DAS POLÍTICAS AGRÍCOLAS NESTA REGIÃO ATINGEM €20 POR HECTARE, MAS NO ALENTEJO E RIBATEJO CHEGAM AOS €200”

João Paulo Catarino destaca também dois objetivos do programa: uma cultura de segurança pública e a revitalização económica, social e ambiental. “As aldeias devem ter uma planta de emergência em caso de fogo, como têm os edifícios urbanos, faixas de proteção à sua volta e a população deve receber formação adequada para usar kits de primeira intervenção”, exemplifica. Por outro lado, “diversificar a economia nestes territórios é crucial, desenvolvendo a agricultura, a silvopastorícia, a caça sustentável, a floresta multifuncional”. O investimento anunciado pela Lusiaves a seguir aos incêndios de junho “é um bom exemplo que gostaríamos de replicar”. São 64 milhões de euros para produzir ovos para incubação e aves, com a criação de 300 empregos em Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos.

Nádia Piazza, presidente da Associação de Apoio às Vítimas de Pedrógão Grande, afirma que o programa “é a última oportunidade da região para ter um futuro diferente. Não queremos voltar ao que era antes dos incêndios”. E é também “a última oportunidade para os municípios e o Estado demonstrarem que têm mão no território, que exercem a sua autoridade”.

Falhas com tolerância zero

No período de debate público a associação ouviu especialistas e deu um parecer geral favorável ao programa. “É um projeto-piloto para sete concelhos e por isso tem de ser arrojado, estrutural e inovador”, insiste a dirigente associativa. E no ordenamento do território da região que abrange, “não pode haver contemplações do Estado em relação a quem não cumpre as regras e os planos, porque se isso acontecer o dinheiro que vai para os municípios não serve para nada”. Exigente, Nádia Piazza defende que “tem de haver tolerância zero, se um município não cumprir planos, funções e atribuições, o Estado deve cortar transferências para o seu orçamento”.

A tolerância zero tem de ser igualmente aplicada aos proprietários florestais, “e o Estado deve tomar posse administrativa das milhares de parcelas de terreno florestal abandonadas”. O quadro legislativo e executivo do programa “tem de ser claro, firme, com fiscalização efetiva, sanções, prazos para cumprir e balanços anuais de execução”. A dirigente associativa está preocupada com a capacidade da região atrair investimento, o seu trabalho na Câmara de Figueiró dos Vinhos. “Antes já era difícil e agora será mais, por isso temos de demonstrar um propósito firme de alterarmos em termos estruturais e culturais as práticas dominantes, doa a quem doer”.

As políticas públicas “não respeitam o princípio da coesão territorial, porque a região do Pinhal Interior não é praticamente apoiada pela Política Agrícola Comum e pela política de desenvolvimento regional”, alerta Francisco Cordovil, que participou também no debate público do programa. O professor do ISCTE, especialista em economia agrária e economia regional, que já foi diretor do Gabinete de Planeamento do Ministério da Agricultura, fez as contas e revela números impressionantes: “Os apoios da política de desenvolvimento rural nesta região atingem cerca de 20 euros por hectare, mas no Alentejo e no Ribatejo rondam os 200 euros por hectare, dez vezes mais”.

Programa do Pinhal Interior passa de 7 para 19 concelhos

É preciso uma nova visão do território, mas os especialistas dizem que o conceito homogéneo de Interior está errado

O Governo está a analisar a hipótese de o Programa de Revitalização do Pinhal Interior (PRPI) ser alargado de sete para 19 concelhos. Ainda não se sabe qual é o orçamento concreto para este programa, porque tudo depende dos projetos que forem apresentados pelos municípios, empresas e associações, mas deverá atingir cerca de 200 a 300 milhões de euros. O programa define a área geográfica, as entidades públicas e privadas envolvidas, a fonte de financiamento e o calendário para a execução de cada medida (ver quadro), que varia entre seis meses e cinco anos.

“Identificámos as fontes do financiamento, que pode vir diretamente do Orçamento do Estado, dos programas em curso suportados por fundos europeus e mesmo dos orçamentos dos municípios”, explica ao Expresso Luís Matias, presidente da Câmara de Penela, um dos sete municípios abrangidos pelo PRPI. “Agora é tempo de fazer a programação financeira e um calendário para a aplicação dessas verbas na concretização de cada medida do programa.”

Mas há uma questão crucial entre os especialistas para que um programa de médio e longo prazo possa resolver os problemas estruturais que estão na origem dos incêndios: é preciso uma nova visão do território. Com efeito, “as políticas territoriais explícitas em Portugal, como a política de desenvolvimento regional, foram completamente capturadas pela lógica da execução dos fundos da UE, ou seja, o que existe hoje é apenas uma política de gestão dos fundos europeus”, constata João Ferrão. O ex-secretário de Estado do Ordenamento do Território e investigador do Instituto de Ciências Sociais (Universidade de Lisboa) acrescenta que “a política de desenvolvimento rural não tem peso nenhum nas políticas agrícolas nacionais financiadas pela PAC”.

O interior é como a pele de um leopardo

João Ferrão reconhece que “a tragédia dos incêndios florestais trouxe o território para as agendas mediática, política e científica”. Mas há ambiguidades nesta mudança: “O pressuposto de que há uma realidade homogénea chamada Interior está errado, porque existem vários interiores com níveis de desenvolvimento diferentes.”

O investigador compara o conceito à pele do leopardo. “Tem manchas de vitalidade demográfica e económica onde há cidades e sedes de concelho, mas nos interstícios tem áreas onde é impossível voltar aos níveis de população do passado.” De facto, a população dos concelhos de Bragança, Vila Real, Viseu, Castelo Branco, Évora ou Beja continua a crescer, revelam as estatísticas do INE. E se não for reconhecida esta diferença, “uma nova estratégia de ordenamento do território e de desenvolvimento está condenada ao fracasso, porque vai tratar como igual aquilo que é estruturalmente desigual”.

O conceito de Interior “não é o guião para uma nova estratégia, é uma boa intenção sem conteúdo, o que significa que se corre o risco de passar ao lado dos principais problemas”, considera Augusto Mateus. “O importante é apostar numa estratégia de povoamento do território e de criação de riqueza, não tornando a sociedade dependente do Estado, porque não há desenvolvimento económico e social sustentável se a maioria dos rendimentos depender da despesa pública.”

O economista e consultor sublinha que a diversidade territorial que existe em Portugal “não se pode gerir da mesma maneira e reduzir apenas à dicotomia litoral/interior e urbano/rural”. Na verdade, “o Interior não é um problema geográfico, porque há interior no litoral e litoral no interior” (ver mapa).

Ordenamento ao serviço do povoamento

Augusto Mateus diz que “há planos de ordenamento do território que não cuidam da atração de pessoas e por isso é necessário pôr o ordenamento ao serviço do povoamento”. Os recursos endógenos dos territórios despovoados “têm de ser valorizados, não olhando apenas para o mercado interno mas também para a economia global, de modo a atrair e fixar talentos e empresas e a criar oportunidades mais internacionais e distintivas”. João Ferrão acrescenta que há políticos “que têm identificado o chamado Interior com áreas fronteiriças viradas para o mercado ibérico e o litoral virado para o mercado global, o que afunila uma estratégia e retira esperança àqueles territórios”.

O Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território (PNPOT), que data de 2006, está neste momento a ser alterado. Célia Ramos, secretária de Estado do Ordenamento do Território e Conservação da Natureza (Ministério do Ambiente), explica que há mudanças profundas no país que justificam esta alteração: “não há crescimento demográfico, as alterações climáticas estão no terreno e vão ter grande relevância, a presença das tecnologias é mais forte e há transformações económicas e sociais no emprego e no envelhecimento da população”.

Célia Ramos reconhece que “há cada vez menos diferenciação entre litoral e interior, e cada vez mais sistemas que dominam mais num do que noutro local e que se cruzam”. E defende que o programa “deve dar prioridade ao ordenamento da floresta numa perspetiva de remuneração dos serviços que presta ao país no sequestro de carbono, retenção de água, proteção contra a erosão ou produção de frutos silvestres”.

Augusto Mateus argumenta que “nenhum país tem futuro sem planeamento e Portugal mostra uma grande dificuldade em planear além dos ciclos eleitorais. Mas ao elegermos o chamado Interior, que não se sabe bem o que é, como objeto de planeamento, corre-se o risco de passar ao lado dos principais problemas”. V.A.

Programa de revitilização do pinhal interior

FLORESTA SUSTENTÁVEL

  • Organizar o espaço nas áreas queimadas
  • Criar estação-piloto para recuperar áreas ardidas e sensibilizar produtores
  • Recuperar e restabelecer os povoamentos florestais
  • Proteger e manter os recursos hídricos
  • Lançar Sistema de Informação Cadastral Simplificada
  • Reforçar incentivos à gestão sustentável da floresta
  • Aperfeiçoar e ampliar mecanismos reguladores do fracionamento de prédios rústicos
  • Desenvolver redes de faixas de gestão de combustível
  • Projeto-piloto Aldeias Seguras
  • Projeto-piloto de Vigilância e Proteção das Florestas
  • Instalar sistemas automáticos de deteção precoce de incêndios
  • Criar Observatório para a Gestão do Fogo
  • Reforçar e modernizar as respostas a situações de emergência
  • Reduzir ignições em espaço rural e reforçar investigação

TERRITÓRIO ATRATIVO

  • Aumentar produtividade das indústrias florestais
  • Apoiar novas produções baseadas na floresta
  • Instalar centrais a biomassa
  • Criar rede de investigação para o pinheiro-bravo
  • Relançar a apicultura
  • Projeto-piloto de silvopastorícia
  • Desenvolver fileira do medronheiro
  • Relançar fileira da resina
  • Desenvolver caça sustentável
  • Atrair novas indústrias
  • Valorizar o turismo
  • Valorizar agricultura familiar
  • Atrair jovens agricultores
  • Modernizar explorações agrícolas
  • Valorizar agroindústrias e reforçar transferência de conhecimento
  • Atrair grandes projetos empresariais
  • Projeto-piloto de compensação dos serviços ambientais da floresta
  • Projeto-piloto Educação para a Sustentabilidade

COESÃO E INCLUSÃO

  • Projeto-piloto de Revitalização das Aldeias para recuperar equipamentos coletivos e património
  • Consolidar a rede física viária
  • Consolidar as áreas de acolhimento empresarial
  • Expandir o projeto-piloto “Transporte Público Flexível”
  • Reforçar a conectividade, assegurando o acesso mais generalizado e transversal à banda larga móvel
  • Reforçar e melhorar a qualidade do ensino profissional
  • Reforçar a qualificação profissional dos trabalhadores das empresas diretamente afetadas pelos incêndios
  • Projeto-piloto em Serviço de Apoio Domiciliário Personalizado
  • Reforçar as respostas de proximidade em saúde
  • Programa de Incentivos à Inovação e Empreendedorismo Social
  • Fomentar a criação de cooperativas de base social
  • Promover o desenvolvimento cultural
  • Lançar o Programa Jovem+

Afinal o que é o Interior?





A Unidade de Missão para a Valorização do Interior (UMVI) foi criada pelo Governo em novembro de 2016 para desenvolver e supervisionar o Programa Nacional para a Coesão Territorial, bem como promover medidas de desenvolvimento de natureza interministerial. A lista dos concelhos e freguesias beneficiários do programa foi fixada em portaria em julho de 2017. Os chamados territórios do Interior atingem 2/3 da área do Continente e integram todos os concelhos dos distritos de Beja, Évora, Portalegre, Castelo Branco, Guarda, Bragança e Vila Real, e parte dos concelhos e freguesias dos distritos de Faro, Setúbal, Santarém, Leiria, Coimbra, Viseu, Braga, Viana do Castelo, bem como os distritos litorais de Aveiro e Porto. Ou seja, só escapa o distrito de Lisboa, o que significa que em termos geográficos há concelhos do dito interior, no Alentejo e no Algarve, que estão no litoral; e um concelho a 80 km do mar, Viseu, que em parte não é abrangido pelo programa. Conclusão: o conceito de Interior está a ficar desfasado da realidade.