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Seis ex-governantes que assumiram o lugar de deputados falam sobre as novas rotinas, 'períodos de nojo' e tabus
Expresso


Jorge Gomes evita para já “tocar” em assuntos do MAI

Palmadas nas costas, abraços efusivos. Quem está no corredor junto à entrada do hemiciclo assiste à cena: Jorge Gomes, acabado de deixar o cargo de secretário de Estado da Administração Interna para assumir o lugar de deputado no Parlamento, é cumprimentado pelo presidente do PS, Carlos César, e por outros parlamentares que o rodeavam. Ali perto, Constança Urbano de Sousa, também ela acabada de sair do Governo — neste caso, deixara de ser ministra da mesma pasta —, abraça Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da Justiça de Passos. Ao lado, um grupo de deputados socialistas indecisos hesita se deve dirigir-se à ministra para mostrar apoio ou entrar diretamente no hemiciclo.


Catarina Marcelino também se remeteu ao silêncio

O relógio marca as 15 horas e o calendário, o dia 24 de outubro. Dentro do hemiciclo começa a sessão: um debate dedicado à moção de censura apresentada pelo CDS, relativamente à atuação do Governo nos incêndios. Constança Urbano de Sousa toma o seu lugar, mais recuado, ouvindo falar sobre as medidas que ajudara a preparar, ainda enquanto ministra. À bancada também regressa o ex-secretário de Estado, mais popular entre os colegas mas igualmente discreto nas últimas filas.

Não é caso raro: muitos ex-governantes que vão para o Parlamento preferem ter um período de acalmia antes de regressarem aos holofotes. Constança Urbano de Sousa recusou falar ao Expresso sobre a entrada na AR, dizendo estar precisamente em “período de nojo”. Mais conversador, Jorge Gomes explica que o seu “período de nojo” apenas se aplica às políticas sectoriais. Escolheu integrar as comissões de Defesa e do Orçamento para não se cruzar com a Administração Interna: “Entendo que tenho de ter um período superior a seis meses em que jamais tocarei ou falarei de assuntos que toquei enquanto governante”, diz ao Expresso.


Rocha Andrade é dos mais interventivos

Em parte, esse conhecimento foi acumulado a partir do dia 17 de junho, dia zero da tragédia de Pedrógão. Hoje, mais de quatro meses depois do sucedido e do abraço de consolo que recebeu de Marcelo Rebelo de Sousa nessa noite em Pedrógão, diz que o que aprendeu não se esquece: “Embora sinta que como governante fiz tudo o que podia fazer, acho sempre que fiz pouco, porque aconteceu o que aconteceu.” E apesar da boa receção, das palavras finais que o primeiro-ministro lhe deixou (“deu-me aquilo que eu esperava de um grande amigo”), de o telefone já não tocar com más notícias (“felizmente já não sou eu que as recebo, mas alguém sofre como eu sofri”), assegura: “Não senti alívio rigorosamente nenhum quando voltei ao Parlamento.”

Uma questão de “estética”

Voltamos a 24 de outubro, dia em que se discutiu a moção de censura. Nessa tarde, outro ex-governante, o antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, que pediu para sair do Governo em julho, destacou-se com as características que já tinha no Executivo: proeminente, interventivo, próximo de Costa. Fernando Rocha Andrade interveio no debate, defendeu o Governo, como já antes falara no primeiro debate quinzenal depois dos fogos de outubro — foi o primeiro socialista a tomar a palavra e para defender Constança.

Ao Expresso, o deputado explica por que escolheu a comissão de assuntos constitucionais e não assumiu um papel mais proeminente naquela que seria a sua área natural, na comissão do Orçamento: “Poderia dar-se uma circunstância que até podia ser inestética, que era estar a debater com o meu sucessor.” O que não impediu que a direção da bancada lhe “solicitasse” que participasse “num conjunto de debates” sobre a área dos fogos, até porque na sua primeira passagem pelo Governo, em 2005, foi subsecretário de Estado da Administração Interna, na altura com o ministro António Costa. “Não foi algo que eu tivesse planeado ou escolhido.” Até porque nem sempre lhe agrada a discussão no Parlamento: “As questões não são reduzíveis a frases de 30 segundos (...) e à opinião que se produz para os telejornais da noite e os jornais do dia seguinte.”

Margarida Marques também é das mais interventivas

Quem o vê na linha da frente da bancada socialista adivinha-o à vontade; já no Governo o desgaste pode levar a melhor, explica Rocha Andrade. “Por vezes, quando estou a meio do desempenho dessas funções, apetece-me arrancar os cabelos e penso: porque é que me meti nisto?” Como deputado, é “assessor de si próprio”, anda com o “escritório no bolso”.

“Até pensei que tinha falecido...”

Foi em julho que Rocha Andrade saiu do Governo, um ano depois de ter rebentado o caso Galpgate. E apesar de a saída ter acontecido graças a um escândalo, diz que nunca foi tão elogiado: “No momento da minha saída houve um conjunto muito grande de elogios ao meu desempenho.” E ironiza: “Por vezes até pensei que tinha falecido: normalmente só quando uma pessoa morre é que há esse reconhecimento...”

Jorge Gomes escolheu integrar a Comissão de Defesa

Também foi esse o caso de Catarina Marcelino, secretária de Estado da Igualdade até se dar a pequena remodelação que substituiu Constança Urbano de Sousa por Eduardo Cabrita e alterou parte da estrutura governamental. Uma mudança que não foi por todos compreendida, com direito a elogios públicos da parte de deputados do PS, como Paulo Trigo Pereira ou Porfírio Silva, e a um jantar de homenagem de vários socialistas. Ao Expresso, explicou não querer falar “para já”, assegurando que mais para a frente aproveitará “o know-how” acumulado durante os tempos no Governo.

FRASES

“Tenho de ter um período superior a seis meses em que jamais tocarei ou falarei de assuntos que tratei enquanto governante”
Jorge Gomes
Ex-secretário de Estado da Administração Interna

“Às vezes apetecia-me arrancar cabelos e pensava: porque é que me meti nisto?”
Rocha Andrade
Ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais

“Não sou o Puigdemont da Catalunha, mas também não sou propriamente o domador de leões do circo Cardinali”
João Soares
Ex-ministro da Cultura

Margarida Marques, ex-secretária de Estado dos Assuntos Europeus, adotou outra atitude. Saiu do Governo em julho e teve que tomar uma decisão: continuar a trabalhar com o mesmo afinco nas questões europeias ou adaptar-se para intervir pouco. Escolher o segundo caminho, explica, seria como “trair” quem a elegeu.

Não foi a primeira vez que assumiu este papel no hemiciclo: já fora deputada entre 1983 e 1985, durante o Governo do Bloco Central. E a diferença de voltar foi como “da noite para o dia”. “Tive um filho quando era deputada, em 1983, e lembro-me de uma colega dizer ‘ai, tenho tanta pena de ti, grávida e ainda cá estás’. A Assembleia trabalhava durante toda a noite, se fosse necessário.” Agora que voltou, as rotinas continuam difíceis, porque está habituada a começar a trabalhar “muito cedo, antes das 8h”, e no Parlamento praticamente não há comissão (é vice-presidente da comissão de assuntos europeus e membro da comissão do Orçamento) que reúna antes das 9h.

Na questão das rotinas, todos os ex-governantes reconhecem mudanças: acordam mais tarde, atendem mais telefonemas e, diz João Soares, que saiu do cargo de ministro da Cultura quatro meses depois de o Governo ter tomado posse, usam “menos gravata”. De resto, conta, há um pormenor simples em que lhe dá gosto pensar, quando olha para o seu já longo historial político. “Há aqui uma papelaria ao pé do Parlamento que é a do senhor Carlos, muito simpático, mais velhote que eu, e que todos frequentamos. A única fotografia que ele lá tem na papelaria é comigo. É uma das coisas que me dão orgulho, muito mais do que aquelas placas que estão aí por todo o lado. É uma coisa genuína.”

João Soares escolheu integrar a Comissão de Defesa

“Nós, portugueses, estamos sempre à espera de que alguém faça uns milagres”

João Soares considera que tanto Marcelo como Costa “encontraram-se com o que esperavam que fosse o seu destino”

O Parlamento não é novidade para João Soares — já foi deputado em seis legislaturas, e foi para o Parlamento que voltou quando se tornou o primeiro-ministro a cair por causa de um post no Facebook, quatro meses depois de ter tomado posse como ministro da Cultura no Governo de Costa. Tudo graças a uma publicação em que oferecia umas “salutares bofetadas” a dois cronistas e que “dá bem uma noção de como as coisas funcionam em termos de opinião pública”, defende: “Três linhas no Facebook que ninguém leu transformaram-se numa alteração de personalidade comigo a parecer um tipo violento, que bate nas pessoas. Acho que as pessoas hoje já caíram em si. Não sou o Puigdemont da Catalunha, mas também não sou propriamente o domador de leões do circo Cardinalli”. A experiência dá-lhe uma certeza: “Não mitifico nem a posição de deputado nem a posição de membro do Governo. O meu comportamento não se modificou rigorosamente nada”.

Se na conversa com o Expresso recorda com especial carinho a “fabulosa, a nível de realização pessoal”, função de autarca, especialmente à frente da Câmara de Lisboa, a que presidiu entre 1995 e 2002 (“uma máquina mais pesada do que qualquer ministério, à exceção das Finanças”), também lembra a importância que tem o perfil pessoal de quem ocupa essas funções. “Nós temos enquanto povo uma visão muito institucionalista, no sentido em que estamos sempre à espera de que alguém faça uns milagres e mitificamos o papel das pessoas que exercem funções de poder. Um exemplo interessante é o do atual Presidente da República”, explica. “Há ali uma transformação do que foi a imagem pública por via do exercício de funções. É manifestamente alguém que se encontrou com aquilo que esperava que fosse o seu destino, como acontece, aliás, com o [António] Costa. Acho que qualquer um deles achou sempre que podia exercer [essas funções] — o que é normal, porque estas coisas também não caem do céu aos trambolhões, é preciso fazer por isso. A sorte também custa a preparar”.

A receita do “sucesso” para quem assume uma vida pública assenta em vários pilares: “A primeira condição para se fazer qualquer coisa bem é estar-se bem connosco próprios e com os outros e ter uma perspetiva correta daquilo que é a postura de serviço público. Eu, passe a imodéstia, acho que sempre tive essa perspetiva — um tipo desapegado de questões de natureza material, não tenho questões de ego para resolver”. M.L.C.