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ESCRAVOS DO TELEMÓVEL
Expresso


Na véspera de escrever este texto, instalei duas aplicações no telemóvel (In Moment e BreakFree) para saber exatamente quanto tempo por dia passava ligado ao mundo virtual e em cada uma das aplicações que uso com frequência. Conhecia bem as estatísticas: desde que nos levantamos até que nos deitamos, pegamos no smartphone, em média, mais de 150 vezes e passamos quase 2h30 de olhos colados ao ecrã. Escolhi talvez um mau dia para realizar o exercício, porque, tendo um artigo para acabar, o normal era que passasse mais tempo concentrado nessa tarefa e menos nas redes sociais. O facto de, 24 horas depois, ter desbloqueado o ecrã ‘apenas’ 75 vezes parecia confirmar isso mesmo. Mas uma segunda análise revelava uma realidade mais preocupante: tinha utilizado o telemóvel durante 215 minutos, mais de 3h30. Metade desse tempo tinha sido passado no Facebook a ler as últimas novidades das tragédias dos incêndios. Tinha ainda gasto 35 minutos no Instagram, 34 a navegar na internet e a consultar o e-mail, 10 no WhatsApp, 8 no YouTube. Que no meio de tanta distração tenha acabado este texto parece quase uma improbabilidade.

Felizmente, não estou sozinho. Centenas de milhões de pessoas em todo o mundo estão quase permanentemente ligados aos seus smartphones. Tocam-lhes, em média, 2617 vezes por dia, para verificar o e-mail e ver as últimas novidades das redes sociais ainda na cama, trocar mensagens no WhatsApp enquanto conduzem, combinar encontros no Tinder nos intervalos do trabalho, transmitir imagens em direto de concertos, fazer compras online... Nunca sentiu o bolso vibrar, como se tivesse recebido uma chamada ou uma mensagem, para depois descobrir que era um falso alarme? Os especialistas chamam-lhe nomofobia, o medo de ficar sem telemóvel. Quase metade dos utilizadores admitem que já não conseguem imaginar uma vida sem ele.

Sentimo-nos constantemente atraídos para algo que nos distrai, como o canto de uma sereia. Somos interrompidos a toda a hora por uma torrente interminável de mensagens, notificações, e-mails, redes sociais, aplicações. Esperamos mais do mundo, e mais rápido. Tornámo-nos cada vez menos pacientes com a realidade. E se ela não corresponde às nossas expectativas, viramo-nos para o ecrã do telemóvel, a tábua de salvação do mundo exterior. Perdemos o controlo da tecnologia e deixámos que fosse ela a controlar-nos a nós. Tornámo-nos escravos dos nossos telemóveis.

Em Portugal, segundo uma investigação recente, esta dependência afeta cerca de 14% dos jovens e jovens adultos. São na sua maioria mulheres e o fenómeno está muito associado “à nova tendência de visualização ao minuto de tudo o que os famosos youtubers publicam”, revela a orientadora do trabalho, Ivone Patrão, psicóloga na consulta de comportamentos e dependências online da Clínica ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada). Outro estudo mostra que dois terços dos adolescentes portugueses têm “grande necessidade” de verificar o smartphone com regularidade e quase um terço dos jovens com 13 e 14 anos utilizam-no em excesso. Muitos deles cresceram com um telemóvel na mão: uma em cada cinco crianças portuguesas entre os três e os oito anos usa um.

Pegamos no smartphone, em média, mais de 150 vezes por dia e passamos quase 2h30 de olhos colados ao ecrã

Apesar da dependência do smartphone não ser ainda reconhecida como uma doença mental pela Associação Americana de Psiquiatria e pela Organização Mundial de Saúde, já não é possível ignorar este fenómeno, alertam muitos especialistas. “No passado pensávamos em dependências relacionadas sobretudo com substâncias químicas: heroína, cocaína, nicotina. Hoje temos este fenómeno que não envolve substâncias — apenas comportamentos —, mas que tem as mesmas consequências psicológicas”, explica ao Expresso Adam Alter, professor da Universidade de Nova Iorque e autor do livro “Irresistible: The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping Us Hooked” (Irresistível: A Ascensão da Tecnologia Viciante e o Negócio de Nos Manter Agarrados). O psicólogo decidiu escrever a obra depois de perceber que ele próprio não conseguia deixar de jogar e usar algumas aplicações do telemóvel. “Quis perceber se isso era verdadeiro para outras pessoas. E é! Cerca de 50% de nós temos pelo menos uma dependência comportamental.”

Tão perigoso como álcool ou drogas

Segundo Tony Rao, um investigador em Psicologia do King’s College de Londres, o vício das redes sociais, por exemplo, pode ser tão perigoso como o álcool, o tabaco ou as drogas. “Pode não causar danos físicos, mas tem o potencial de provocar danos a longo prazo nas nossas emoções, comportamentos e relações”, escreve num texto publicado no site “The Conversation”. Usar o telemóvel em excesso “deteriora sobretudo a saúde mental, desencadeando problemas psiquiátricos como a depressão, a ansiedade, o défice de atenção. É também muitas vezes associada a problemas de sono e a uma desregulação emocional, uma vez que os indivíduos dependentes utilizam os smartphones para fugirem à realidade e sentirem-se melhor”, aponta o psicólogo clínico Halley Pontes, diretor-geral da Sociedade Portuguesa das Adições Comportamentais e Tecnológicas (SPACT) e professor na Nottingham Trent University, no Reino Unido.

Outras consequências importantes, acrescenta Ivone Patrão, são o favorecimento da socialização digital em detrimento da socialização presencial, “o que poderá trazer o desenvolvimento de poucas competências sociais, essenciais para o ingresso no mercado de trabalho”, bem como problemas decorrentes das alterações de postura e do comportamento alimentar. “Começamos a perceber que não é só o peso nas mochilas que poderá estar a contribuir para alterações na coluna. Além disso, temos a ingestão de snacks rápidos para estar sempre online. Como se sabe, a obesidade está associada a outros problemas de saúde.”

Alguns investigadores admitem, porém, que a dependência dos smartphones poderá ter pelo menos um efeito positivo: pode estar a contribuir para uma diminuição do consumo de álcool e de drogas entre os adolescentes. “Passar tempo online parece agora mais desejável do que ir para um pub com amigos”, afirma Tony Rao. Sílvia Martins, especialista em dependências da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, acredita que o impacto dos telemóveis na queda generalizada no consumo de drogas entre os adolescentes americanos nos últimos 15 anos é “uma hipótese plausível”, mas faltam estudos que o confirmem. “Uma possibilidade avançada por vários investigadores é a de que esta geração, de tão ocupada com os telemóveis, acaba por não procurar o efeito de drogas. Os telemóveis estariam a dar-lhes as mesmas sensações, funcionando como uma ‘bomba de dopamina’ portátil”.

VÍTIMAS DA ECONOMIA DA ATENÇÃO

Pode parecer que esta dependência é uma responsabilidade inteiramente dos utilizadores, mas Tristan Harris, um ex-quadro da Google, garante que não é bem assim: o facto de nos sentirmos puxados para os nossos telemóveis não é um acaso; acontece porque estes são concebidos para serem cada vez mais viciantes, recorrendo a princípios da psicologia comportamental para explorar as nossas vulnerabilidades.

A culpa, explica, é da economia da atenção: as empresas tecnológicas competem para conseguir captar a nossa atenção a qualquer custo. Como o modelo de negócio de muitas aplicações e muitos sites é baseado na publicidade, estes tentam ser o mais atrativos possíveis para seduzir mais pessoas e mantê-las entretidas durante mais tempo. É uma corrida frenética, que transforma os utilizadores em meros peões dessa estratégia. “Em nenhuma outra altura da história as decisões de uma mão cheia de engenheiros — maioritariamente homens, brancos, a viver em São Francisco, e com 25 a 35 anos — a trabalhar em três empresas tecnológicas [Google, Apple e Facebook] tiveram tanto impacto sobre a forma como milhões de pessoas gastam a sua atenção”, lembra Harris, que durante três anos estudou na Google a forma como a tecnologia afeta a atenção, o bem-estar e o comportamento de milhões de pessoas.

Gabe Zichermann chama-lhe “a economia da dependência”, onde cada ator tenta persuadir as pessoas a fazer algo “que elas querem, mas que é contra o seu interesse”, e que não é exclusiva da tecnologia, verificando-se também no comércio, na alimentação e no entretenimento. “A grande diferença entre o passado e agora é que os algoritmos estão concebidos para usar a nossa força de vontade contra nós e adaptam as suas experiências para serem tão viciantes quanto possível.” Zichermann sabe bem do que fala: durante a última década, ele foi um dos principais rostos da gamificação — o uso de conceitos dos jogos para agarrar os consumidores —, tendo trabalhado com vários gigantes tecnológicos para tornar os seus produtos mais atrativos. Há dois anos, criou a Onward, uma startup que cria ferramentas para ajudar os consumidores a usar a tecnologia de forma mais equilibrada.

Esta é também uma realidade familiar para Tristan Harris. Depois de estudar computação na prestigiada Universidade de Stanford, integrou o Laboratório de Tecnologia Persuasiva da mesma instituição, onde aprendeu como a psicologia comportamental pode ser usada para tornar a tecnologia mais apelativa. Por exemplo, uma opção aparentemente simples, como recompensar um post no Facebook ou uma foto do Instagram com ‘Gostos’ dos amigos, é um incentivo para que os utilizadores prossigam com essa atividade. Harris começou então a perceber que a tecnologia não era neutra como muitos engenheiros defendiam; pelo contrário, podia induzir o nosso comportamento de diferentes formas, recorrendo ao que ele chama “técnicas para sequestrar” a mente, uma versão digital do sal, açúcar ou gordura que é usada na junk food para que esta seja consumida compulsivamente.

UMA SLOT MACHINE NO BOLSO

É como colocar uma slot machine no bolso de mil milhões de pessoas, diz Harris. “Em média, consultamos o telemóvel 150 vezes por dia. Porque fazemos isto? Estamos a fazer 150 escolhas conscientes? Uma das principais razões é o número 1 dos ingredientes psicológicos das slot machines: recompensas variáveis.” O defensor do design responsável, descrito pela revista “The Atlantic” como “a coisa mais parecida com uma consciência no Silicon Valley”, dá vários exemplos: quando fazemos refresh do e-mail, é como se jogássemos numa slot machine para ver se temos uma mensagem nova; fazemos o mesmo quando deslizamos o dedo no Tinder à espera de conseguir um match; ou quando abrimos uma notificação de mensagem no WhatsApp para ver o que ela revela. “As apps e os sites estão cheios destas recompensas intermitentes e variáveis porque isso é bom para o negócio.”

Uma das formas de tornar essas recompensas tão viciantes é criar expectativa. Não é por acaso que quando entramos no Facebook ou no Instagram a cronologia demora alguns segundos a carregar; o mesmo princípio está por detrás das reticências ondulantes que nos mantém à espera de uma resposta quando alguém nos escreve no Facebook Messenger. É também para criar um sentido de urgência e de reciprocidade social que somos avisados quando uma mensagem é lida — criando assim, em quem a recebeu, uma maior necessidade de responder prontamente. No final, centenas de milhões de pessoas em todo o mundo acabam “a correr como galinhas a quem cortaram as cabeças, respondendo umas às outras e sentindo-se sempre em dívida umas com as outras”, afirma Harris.

A lista de técnicas para manter os utilizadores agarrados ao ecrã é longa. Pense, por exemplo, nas notificações — são iscos que requisitam a nossa atenção e fazem com que mordamos o anzol, criando um círculo vicioso que gera dezenas, em alguns casos centenas, de interrupções por dia. As interrupções são boas para o negócio, mas não para a produtividade: são precisos poucos segundos para responder a um mero pedido de amizade no Facebook, mas dizem alguns estudos que as pessoas demoram, em média, 25 minutos a voltar à tarefa original. Como? É provável que, depois de aceitarem ou rejeitarem o pedido, espreitem a cronologia, repleta de snacks em forma de fotos, vídeos e artigos para saciar o seu apetite e fazer com que se mantenham por ali o máximo tempo possível. Harris chama-lhe uma “taça sem fundo”, referindo-se a um estudo que concluiu que, sem que se apercebam disso, as pessoas comem 73% mais sopa quando são utilizadas tigelas que se enchem automaticamente à medida que elas vão comendo. “As empresas tecnológicas exploram o mesmo princípio. As cronologias são concebidas para se autopreencherem com motivos que mantenham as pessoas a percorrê-las, eliminando qualquer razão que as faça parar, reconsiderar ou sair.” Segundo o antigo quadro da Google, é também isso que explica que o YouTube e o Netflix passem para o vídeo seguinte depois de terminarmos de ver aquele que escolhemos, ao invés de esperarem que façamos uma escolha consciente. “Uma grande parte do tráfego desses websites vem do autoplay.”

Outra forma de as apps e os sites ‘agarrarem’ as pessoas é induzirem a ideia de que elas podem estar a perder algo importante. É esse medo que faz com que subscrevamos newsletters, mesmo que muitas vezes acabemos por nem as ler; é por isso que continuamos a usar o Tinder, mesmo que não tenhamos encontrado ninguém que nos interesse em muito tempo; e é por isso que continuamos a consultar as redes sociais, com medo de perder uma notícia importante ou a última novidade dos nossos amigos. “O telemóvel está sempre a oferecer-nos opções que podem ser mais produtivas, mais divertidas ou mais estimulantes do que a realidade.”

COMO QUEBRAR O CÍrculO VICIOSO

O problema, sublinha Adam Alter, é que o modelo de negócio das redes sociais, construído em torno das necessidades publicitárias, está tão entrincheirado e é tão lucrativo que muito dificilmente as empresas tecnológicas abdicarão dele. “Os incentivos estão alinhados contra os consumidores. Faz sentido para essas empresas minar a nossa atenção, porque é assim que ganham dinheiro com os anúncios e as suas plataformas ganham tração. Não podemos esperar que mudem isso de livre vontade. Temos de pensar em mudar as políticas ou a forma como os consumidores olham para estas empresas. Temos de exigir que nos tratem e ao nosso tempo com mais respeito.”

“O telemóvel está sempre a oferecer opções mais produtivas, divertidas e estimulantes do que a realidade”, diz Tristan Harris

Tristan Harris diz-se pronto para liderar essa revolução, antes que tecnologias ainda mais imersivas, como a realidade virtual, nos empurrem para um ponto de não retorno. Primeiro começou ele próprio a assumir o controlo do seu smartphone, procurando que o ato de pegar nele seja uma opção consciente e não uma ação instintiva ou a resposta a um qualquer impulso: desligou quase todas as notificações, colocou as apps que funcionam como slot machines numa pasta secundária e deixou apenas no ecrã principal do telemóvel aplicações indispensáveis e que desempenham uma única função, como a Uber ou o Google Maps. Depois, após deixar a Google há dois anos, sentiu que algo tinha de ser feito para pôr fim “a este ciclo de dopamina infinito” e ajudar os utilizadores a desligarem-se mais facilmente dos seus aparelhos. Nasceu assim um movimento, que batizou Time Well Spent (Tempo Bem Gasto), para persuadir os fabricantes tecnológicos a mudar o seu paradigma de negócio e adotarem soluções moralmente mais íntegras. “É inevitável que milhares de milhões de pessoas tenham telemóveis nos bolsos, mas eles podem ser concebidos para desempenhar um papel diferente, ao invés de raptarem a nossa mente. Temos a oportunidade de exigir um futuro diferente da indústria tecnológica.”

O TABACO DO SÉCULO XXI

A iniciativa tem conquistado cada vez mais apoiantes no Silicon Valley, incluindo o investidor Josh Elman. Este antigo diretor de projetos no Facebook diz que as empresas tecnológicas de hoje lembram as grandes tabaqueiras antes de ser estabelecida uma relação direta entre o tabaco e o cancro: estão mais do que dispostas a dar aos consumidores o que eles querem, ao mesmo tempo que infligiam danos colaterais às suas vidas.

Outro ‘arrependido’ é Justin Rosenstein, um dos inventores do botão ‘Gosto’ do Facebook. “É muito comum os humanos desenvolverem coisas com a melhor das intenções e depois elas terem consequências imprevisíveis e negativas”, disse recentemente ao diário britânico “The Guardian”. O engenheiro informático, de 34 anos, lidera agora uma empresa de São Francisco que procura melhorar a produtividade no trabalho e tem-se mostrado preocupado com as consequências do uso intensivo dos telemóveis, em especial a chamada “atenção parcial contínua.” “Hoje, toda a gente parece estar distraída a toda a hora. É crítico que enfrentemos estes problemas agora, já que deveremos ser a última geração que se lembrará da vida antes dos smartphones.”

Esperar que sejam as empresas tecnológicas a tornar os seus produtos menos atrativos é não só “utópico” mas também “injusto”, defende Gabe Zichermann. “Não pedimos aos escritores para tornar os seus livros menos interessantes, ou aos chefes para que a sua comida não seja tão boa. Porque é que deveríamos fazê-lo com as empresas tecnológicas? O uso excessivo dos smartphones é um problema maior do que a obesidade?” Para o responsável da Onward, a resposta está em dar a cada pessoa ferramentas para que possam defender-se “dos algoritmos viciantes que invadiram as nossas vidas”.

Essa é também uma das propostas da Dopamine Labs, uma pequena startup de Los Angeles criada por dois neurocientistas e que usa a neurociência e a inteligência artificial para fazer uma coisa e o seu oposto: por um lado, ajudam a criar apps cada vez mais convidativas; por outro, ajudam os utilizadores a livrarem-se da dependência que elas possam criar. A sua aplicação Space permite que se estabeleça um “momento zen” (entre quatro a 16 segundos) antes de se começar a usar uma app. Dessa forma, esperam dar tempo ao utilizador para se tornar consciente do seu comportamento e a não agir por impulso. “A tecnologia persuasiva e o design comportamental não são intrinsecamente maus. São ferramentas”, explica Ramsay Brown, cofundador da empresa. “Mas usá-los como algumas grandes empresas fazem — para aumentar o tempo de utilização e conseguirem faturar mais em publicidade — é uma treta. Precisamos que a tecnologia persuasiva esteja alinhada com o que as pessoas realmente querem, não apenas com o que os anunciantes e as marcas querem. É o que temos agora e isso é um problema.”