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Observador
A história do Arran entrelaça-se com a história da esquerda dura catalã: resistência à propriedade privada e ao domínio do governo espanhol na Catalunha. O aumento do turismo é a sua nova luta.
“Arran”: do catalão “nivelar”. De forma depurada é isso que este grupo juvenil, uma ramificação não assumida dos comunistas da Candidatura d’Unitat Popular (CUP), defende. O que é que significa “nivelar”? Também a resposta a esta pergunta, para o Arran, assenta numa só palavra: marxismo.
O coletivo que está por detrás de alguns dos protestos mais insistentes contra os altos números de turistas que chegam a Espanha todos os anos começou a ser pensando em 2008, e, até 2012, sucederam-se as fusões que haveriam de levar ao nascimento oficial do Arran.
Nas suas fileiras — que contam com cerca de meio milhar de ativistas — há muita gente sem partido político, incluindo anarquistas, mas, na sua origem, estão grupos tão distintos com os “maulets” — um grupo político ele próprio já uma ramificação do Movimento Independentista e Antifascista da Catalunha —; grupos de intervenção cívica; maoístas e assembleias de jovens de Terrassa, Sant Sadurní ou Horta, tudo distritos catalães, muito focados no desenvolvimento local e na independência da Catalunha.
O grupo defende abertamente a nacionalização de algumas das maiores empresas do ramo turístico da região; a independência da Catalunha e formação de uma república socialista; a ocupação de casas desocupadas; a divisão da riqueza; advoga o fim daquilo que classifica como “sociedade patriarcal” e, mais recentemente, luta pelo fim do fluxo de turistas que inunda as ruas de Barcelona e de outras zonas turísticas de Espanha, como Palma de Maiorca e Valência.
Também nas Baleares e em Valência decorreram ações contra complexos turísticos. Em Palma de Maiorca, a 22 de julho, membros do Arran invadiram a esplanada de um restaurante perto da catedral, incendiando very lights e atirando confetti para cima dos pratos de esparguete com marisco dos clientes da esplanada. As imagens mostram nuvens de fumo cor de rosa, pessoas assustadas e uma gerente hoteleira bastante irritada.
Na sua opinião, a revolta está mal direcionada: “Em vez de nos revoltarmos contra quem apenas quer vir à cidade, apreciar a cidade, devíamos pensar em pressionar os nossos governantes para proibirem que se façam mais hotéis, para limitar o número de arrendamentos locais, para melhorarem a rede de transportes, para vedarem o centro aos automóveis, entre outras coisas. Assim, os turistas habituavam-se a ficar um pouco mais longe do centro e nós, que temos que viver mais longe, tínhamos transportes mais rápidos”.
Oposição ferve, CUP não se distancia das ações do Arran
O partido está a enfrentar um rol de críticas por se recusar a censurar as ações do Arran. A líder parlamentar do da CUP, Mireia Boya, considerou que o Arran fez “uma demonstração simbólica para denunciar um modelo predador de Barcelona” e pede para que “não se dramatize”. Investiu, logo de seguida, contra o governo catalão por defender um poder económico que “é violência pura e dura contra as muitas pessoas que vivem mal”, sublinhado ainda que “neste momento decisivo para o esforço independentista há outros inimigos que é preciso combater”, numa referência ao governo central dos conservadores do Partido Popular, de Mariano Rajoy.
Também Carina Mejías, presidente do grupo parlamentar do Ciudadanos, lamentou que a cidade tenha sido “dominada pelo caos” e pediu atenção para o facto de “os atos de vandalismo” que estão a acontecer em Barcelona não se verem “em mais cidade turística nenhuma”.
O (mui grande) peso no PIB
O PIB da região da Catalunha ronda os 220 milhões de euros — algures entre a Finlândia e a Dinamarca — e 12% dele é gerado pela atividade turística. Em 2016, Barcelona, uma cidade com um pouco mais de 1,5 milhões de habitantes, recebeu quase 17 milhões de turistas, ou 40 mil pessoas por dia.
Tal como em Portugal, o crescimento do turismo foi importante para fazer a economia descolar. Em Espanha entraram, apenas em 2016, 75 milhões de turistas internacionais que ali gastaram 77.625 milhões de euros, quase um quarto do valor das exportações, diz o El País. E já no primeiro trimestre de 2017, houve um aumento de 6,2%, em relação ao mesmo período do ano passado.
Mas as autoridades catalãs não estão indiferentes a este problema. Este ano, Barcelona começou uma ação contra os arrendamentos ilegais no site AirBnb, duplicando o número de inspetores que tentam investigar se todos os anúncios no site estão legais. Dos 16,000 mil anúncios, 7,000 podem estar ilegais. A proibição da utilização de Segways como meio de transporte e a introdução de “contadores” de pessoas perto das principais atrações turísticas são mais duas das medidas que já estão a ser implementadas. Entre junho de 2016 e o de este ano, Barcelona mandou fechar 2.332 anúncios no Air bnb e multou outros 3.473 — é a "tolerância zero" decretada à oferta ilegal de alojamento local por parte da presidente da câmara de Barcelona. Dos mais de 2000 apartamentos listados como ilegais, a própria plataforma de arrendamento sazonal já retirou da sua página cerca de 1000.
António Gonçalves, de 34 anos, que trabalha como motorista para um hotel de luxo em Barcelona, não vê estes protestos como alguma coisa que possa vir a prejudicar o turismo a curto prazo mas está preocupado com a violência que lhes está associada até porque “já não é o primeiro nem o segundo hotel com os vidros partidos durante a noite”. Às vezes, quando está muito trânsito, até os próprios turistas lhe perguntam se os catalães não estão um pouco fartos de tanta gente.
“Eu digo que estamos claro, apesar de eu também ser estrangeiro, nos meus dias de folga não posso ir para nenhuma esplanada nem andar alguns quilómetros para fora do centro e também não posso comer onde eles comem, nem viver perto do centro, claro.” António Gonçalves reconhece que a sua profissão “depende inteiramente do turismo”, mas não está totalmente contra as ações do Arran: “Tirando a destruição de propriedade, que só serve para que as pessoas lhe chamem extremistas, deviam fazer ainda mais ações, nas praias, nas ruas, palestras informativas, abaixo-assinados e tudo mais, porque, de facto, Barcelona deixou de ser para quem cá trabalha”, diz.
De Veneza a Valência: as marchas contra os turistas
Em Portugal o vento ajudou a dissipar uma parte da onda de calor que atingiu a Europa do sul no início de agosto. Apropriadamente apelidada de “Lucifer”, a tal onda trouxe consigo veraneantes sedentos de praia e as organizações contra a “enchente” turística entraram na sua fase de maior atividade.
Em Valência, em junho, um grupo de ativistas ocupou um apartamento no centro da cidade velha, listado no AirBnb, e colocou um lençol na janela denunciado os preços das casas e exigindo que as necessidades de habitação dos habitantes locais fossem tidas em conta. Uns dias antes, um grupo de cerca de 100 pessoas, vestidas a imitar turistas, arrastando malas e envergando máquinas fotográficas “encenou” o comportamento que consideram ser tipicamente turístico, urinando em algumas paredes e entrando em grandes grupos em diversos restaurantes.
Em San Sebastian, onde uma população de 180.000 pessoas recebeu, em 2016, 2 milhões de turistas, as palavras “Turistas vão para casa!” apareceram em várias paredes da cidade. E há mais protestos programados para para a Semana Grande, a semana de celebração da cultura basca, que ocupa a região todos os anos, a partir do meio do agosto. Em Bilbau, este fim de semana, um outro grupo escreveu mensagens do mesmo teor nas janelas da sede do Departamento de Turismo do País Basco. As imagens transmitidas pela televisão mostram as equipas de limpeza freneticamente a tentarem limpar as frases escritas com spray preto dos vidros do edifício.
Mas também Veneza está a tentar controlar a ocupação da cidade e há planos para proibir a expansão do número de hotéis, hostels e alojamentos no centro da cidade.
“Não estamos contra os turistas”
Num comunicado difundido pela Europa Press, o Arran diz que “não está contra os turistas”. Opõem-se, sim, ao “modelo turístico” está a ser seguido em Espanha. “Não estamos contra os turistas nem contra o turismo, nós também sabemos que esta é uma atividade humana que pode ser muito enriquecedora. Estamos contra o modelo de exploração adotado que é um modelo capitalista e que concentra os benefícios em muito poucas mãos, além de estar a provocar a destruição do território”, dizem no comunicado, acrescentando que a concentração de turistas “está a fazer aumentar os preços a tal ponto, que as pessoas se veem forçadas a deixar os seus bairros, a largar as suas redes familiares e de apoio”.
O setor do turismo emprega mais de dois milhões de pessoas em Espanha e, em agosto, a taxa de desemprego desceu para os níveis mais baixos dos últimos sete anos. Dos 84.000 postos de trabalho criados em julho de 2016, nota o diário Financial Times, 50.000 nasceram nesta indústria. O Eurostat avisa, contudo, que o emprego é menos estável neste setor e que o “preço” de cada hora de trabalho é consideravelmente mais baixo do que em quase todos os outros. É por aqui que o Arran prefere ir: pela denúncia da precariedade.
O termo “turismofobia” tem sido muito utilizado pelos meios de comunicação social para se referirem às ações deste grupo. As acusações de “xenofobia”, “terrorismo” também já surgiram. Mas o Arran diz que isso “desvirtua um debate necessário”. O que querem, explicam, “é uma reforma do sistema atual” que passa por “parar a emissão de novas licenças hoteleiras até ter havido uma discussão séria sobre como preservar o meio ambiente, melhorar as condições laborais de quem trabalha no setor e proibir a atividade de empresas que permitem disponibilizar quartos e apartamentos através da internet”.
Quem também já pediu consequências para estes atos foi a comunidade empresarial ligada ao turismo em Barcelona. Numa carta a Ada Colau, 27 empresas pedem que ela “corte pela raiz os sucessivos ataques e atos de vandalismo que a atividade turística catalã está a sofrer” e que se “sinalize, repudie e castigue com a lei as pessoas que cometem estes atos”.
Mar Ampurdanés, a porta-voz do Arran que vive longe dos problemas
E a porta-voz oficial do grupo não se desvia muito desta linha. Ao El Mundo, Mar Ampurdanés disse que o Arran “fez um favor ao motorista” do autocarro porque ele merece “melhores condições de trabalho”. No seu estado de WhatsApp lê-se a frase: “Orgulho de classe”. O Observador não conseguiu chegar à fala com nenhum dos membros do grupo, mesmo tendo alguns dos seus contactos, sendo que Ampurdanés é das poucas pessoas de quem se conhece o nome, o rosto e até a morada — coisa que fez a jovem retirar muita informação das redes sociais por medo de represálias aos seus amigos e família.
Não fala disso na entrevista, na qual oferece respostas muito curtas e fechadas, sem se alongar sobre os objetivos do grupo nem se defender das acusações que lhes fazem. O Observador também tentou falar com membros da CUP, que, nas redes socais, apoiaram algumas das ações do Arran, mas raramente o fazem à comunicação social. Duas deputadas aceitaram falar até termos explicado o tema da entrevista. Ampurdanés não nega, contudo, que o Arran se aproxima de outros movimentos a que chama de “libertação dos povos” — Venezuela, Cuba e o grupo separatista basco ETA incluídos — e que a ideia é destruir o sistema capitalista, do qual o turismo faz parte.