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Os avisos ao Reino Unido: antes da vida nova, há assuntos do divórcio a resolver
Expresso


Reunidos em Bruxelas, os líderes dos outros 27 países disseram que antes do comércio estão as pessoas, o dinheiro e à Irlanda

Há dias, Angela Merkel já tinha avisado: "países com estatuto de terceiro país — e é o que o Reino Unido será — não podem ter, nem terão, os mesmos ou mais direitos que tinham como membros da União Europeia. Todos os 27 estados membros e as instituições europeias concordam nisto".

Merkel falava no Bundestag não muito depois de um almoço com a primeiro-ministra britânica Theresa May. Sem relatar pormenores do encontro, disse algo significativo. "Isto parece autoevidente. Mas tenho de o afirmar assim claramente porque tenho a impressão de que alguns na Grã-Bretanha ainda têm ilusões a este respeito, e é uma perda de tempo (...) Só podemos fazer um acordo sobre a futura relação da Grã-Bretanha com a UE quando todas as questões sobre os termos da saída poderem ser esclarecidas a um nível satisfatório".

A "futura relação" em causa tem essencialmente a ver com o acordo de comércio ao qual o Reino Unido quer dar prioridade. Para a UE, antes disso estão outras coisas. O alerta de Merkel foi reforçado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros e vice-presidente do governo alemão, Sigmar Gabriel. Falando sobre um dos aspetos centrais em questão, disse: "Com frequência ouvimos estrangeiros que residem no Reino Unido a dizer que estão muito preocupados com o Brexit e as respetivas consequências, não apenas para os seus direitos, mas também no clima geral em relação aos estrangeiros. Isto preocupa-me"

Além do estatuto dos cidadãos da UE no Reino Unido e vice-versa, os assuntos que a UE considera prioritários são a factura a pagar pelo Reino Unido quando sair e a situação da Irlanda (e da Irlanda do Norte). Quanto ao primeiro, não se trata de uma indemnização mas de honrar os compromissos assumidos pelo Reino Unido enquanto estado-membro numa enorme variedade de áreas, desde pensões até a programas já definidos. A UE fala em €60 mil milhões, soma que o Reino Unido considera absurda.

No caso da Irlanda, o problema tem a ver com o imperativo de evitar tensões onde só recentemente terminaram décadas de conflito sangrento. O Acordo de Sexta-Feira, assinado em 1998, prevê que a Irlanda do Norte se possa unificar com a Irlanda se a maioria da população votar nesse sentido - uma possibilidade para já remota. A acontecer, a UE pretende estabelecer desde já que essa província será automaticamente integrada na União.

Resolver o passado antes do futuro

Em março, na carta que enviou a Bruxelas para desencadear formalmente o processo de saída da UE, Theresa May optou expressamente pela chamada 'saída dura' (hard Brexit); quer dizer, uma saída em que o Reino Unido, para retomar o controle total sobre as suas fronteiras e deixar de estar sujeito ao Tribunal Europeu de Justiça, aceita ficar excluído do mercado único. Admitindo que não era possível um país escolher ("cherry picking") só as partes desse mercado que lhe agradavam, May sugeria que as negociações sobre todos os assuntos, incluindo o futuro acordo de comércio com a UE, deviam ter lugar em simultâneo: "acreditamos que é necessário acordar os termos da nossa futura parceria em paralelo com os da nossa saída da União Europeia".

Esta ideia acaba de ser rejeitada. Numa cimeira de sábado em Bruxelas, os outros 27 estados membros aprovaram as linhas de negociação propostas pelo presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. Ele já as havia descrito na carta que enviou a convocar a cimeira: "uma abordagem faseada, o que significa que não discutiremos as nossas futuras relações com o Reino Unido até termos atingido progresso suficiente nos principais assuntos relativos à saída do Reino Unido da UE. Isto não é apenas uma questão de tática mas, dado o quadro temporal limitado que temos para concluir as conversações, é a única abordagem possível"

Apelando a uma posição comum dos 27 países — até porque são eles que vão pagar a diferença quando o Reino Unido deixar de contribuir para o orçamento comunitários — Tusk acrescentava na carta: "gostava que nos uníssemos em termos deste princípio chave na cimeira que se avizinha, para ficar claro que o progresso no que toca a pessoas, dinheiro e à Irlanda tem de vir primeiro".

Em Bruxelas, os 27 países responderam ao apelo, aprovando as linhas de negociação em apenas um minuto. A seguir aplaudiram. O texto agora aprovado explica que "antes de discutirmos o nosso futuro, temos de resolver o nosso passado". No que concerne ao "o quadro da nossa futura relação (com o Reino Unido) a UE diz-se disposta a "engajar em discussões preliminares e preparatórias com esse fim (...) assim que o Conselho Europeu decida que houve progresso suficiente na primeira fase para atingir um acordo satisfatório sobre os arranjos para uma saída ordeira."

Comércio, defesa e espionagem

Com esta posição, ficaram marcadas as dificuldades que o Reino Unido vai enfrentar nos próximos dois anos, e que contrariam o otimismo expresso nos últimos dois meses em relação às perspetivas do país. Ainda em janeiro o ministro dos Negócios Estrangeiros, Boris Johnson, falava na possibilidade de concluir rapidamente um acordo de comércio com os EUA. Mas o secretário de comércio norte-americano colocou recentemente água na fervura, explicando que isso não é uma prioridade para os EUA (um acordo com a UE é mais importante).

De qualquer modo, segundo a lei comunitária, à qual o Reino Unido se encontra sujeito enquanto estiver na UE, nenhum estado-membro pode concluir por si mesmo um acordo com países terceiros, e é duvidoso que o possa sequer negociar. Segundo Tim Farrow, líder do Partido Liberal Democrata (pró-EU), as observações de Gabriel e outros "mostram um nível de consciência que até agora escapou ao nosso governo".

Mesmo a nível dos pormenores técnicos - e os acordos de comércio são sobretudo uma infinidade de pormenores - o governo britânico tem um reconhecido défice de especialistas. Muitos dos seus melhores encontram-se, justamente, em Bruxelas.

Onde o Reino Unido tem capacidades que nenhum outro país europeu iguala é na área militar e na espionagem. Esse argumento tem sido bastante enfatizado não só por May como por alguns dos mais fervorosos partidários do Brexit.